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quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Tosca




A Tosca

Quando chegámos ao quartel da Sétima, na Gabela, tínhamos à nossa espera, além dos camaradas que íamos render, uma cadelinha ainda jovem, que foi de imediato alistada na Messe dos Sargentos.

Não me recordo se já tinha sido “baptizada”, mas se tinha, foi “crismada” e ficou com outro nome: Tosca.

O nome que lhe foi dado parece estranho, para um animal tão dócil, lindo e perfeito.

Acontece que, por razões que desconheço (se alguma vez as soube, esqueci-me), o Mourão e o Miranda Dias quando chegaram de Tancos, onde fizeram o curso de Minas e Armadilhas, vinham com a mania de chamar “tosca” ou “tosco” a tudo e mais alguma coisa, incluindo um ao outro e às próprias namoradas (com quem viriam a casar – espero que não sejam minhas leitoras).

E com o”tosco para cá, tosca para lá”, foram contagiando os camaradas, que começaram a alinhar na brincadeira.

Explicada a origem do nome, passo a contar o disparate que se meteu na cabeça de alguns, com a conivência ou a indiferença dos outros, que não isenta a responsabilidade de nenhum.

A partir de certa altura, alguém lançou a ideia de que o cruzamento entre a Tosca – uma pequena cadela de raça indefinida – e o Lucunga, o cão pastor alemão do alferes Morgado. (*) 


Sanzala Sétima, que acabaria por dar o nome ao quartel, que se encontra ao fundo, quase invsível

(Foto do gabelense Óscar)

E, apesar da dificuldade em conseguir conciliar as diferenças de tamanho entre os dois animais, sendo que a pobre Tosca parecia uma anã junto ao Lucunga, a verdade é que dois ou três dos nossos camaradas conseguiram levar avante os seus intentos.

O que ninguém conseguiu prever (o mais certo foi nem se ter pensado nisso) foram as consequências de um cruzamento entre dois animais de tão dispar corpulência. A Tosca acabaria por parir dois lindos e enormes cachorros, mas morreu de parto, para grande tristeza de todos, e profundo arrependimento de alguns.

Os cachorros cresceram e, pelo menos um deles viajou connosco no regresso a Lisboa, adoptado pelo Mourão. Não me recordo qual foi o destino do outro cachorro (penso que ficou com os camaradas da Companhia que nos rendeu), porque quando a CArt 738 saiu da Gabela, eu já estava em Luanda, no Hospital Militar, quase há um mês.

Nunca mais me esqueci da Tosca, nem do disparate que lhe causou a morte.

(*) O Lucunga era filho da Swazee e do Taninga, pastores alemães altamente adestrados pelo seu dono, o capitão Rubi Marques.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

José Fernando da Silva Pereira Vaz




O Vaz e a esposa no último encontro em que esteve presente, em Couto de Esteves - Março de 2010

Faz hoje um ano que morreu o Vaz. E há um ano que planeio escrever um texto em que fale da nossa amizade, que começou quando ele chegou ao RAL 1, para ser incorporado no BArt 741, passando a fazer parte da minha Companhia – a CArt 738 – com o posto de furriel-miliciano, tendo a especialidade de vagomestre.

Há um ano que venho adiando esse momento, porque continua a custar-me a acreditar que ele nos deixou tão prematuramente.

Decidi que, bem ou mal, chegou o dia de o fazer.

Está enraizado nos nossos costumes o hábito de tornar toda a gente “santa” depois de morrer. Não é isso que pretendo fazer neste post, nem, estou certo, o Vaz gostaria que eu o fizesse.

Era um homem com qualidades e defeitos, como todos nós. Acontece que, apesar da sua juventude, não foi difícil perceber que tinha mais qualidades e menos defeitos do que a maioria dos seus camaradas, onde naturalmente me incluo. A começar por uma maturidade e bom senso, raros para a sua idade, que lhe possibilitavam exercer, com êxito, o papel de moderador, em situações de conflito, que se geram facilmente em ambientes “fechados”, como aquele em que vivíamos no Norte de Angola.


Momentos de boa disposição em Lucunga 
Da esq. para a dta.: O autor do blogue, Vaz e Miranda Dias

Outro aspecto em que fomos afortunados com a sua inclusão na nossa Companhia, teve a ver com a forma como ele, enquanto responsável pela alimentação do pessoal, desempenhou essa função.

Todos os militares que, durante esses anos em que quase não houve nenhum português jovem que não tivesse passado por África, em cumprimento de comissões de serviço militar, ouviram, ou sentiram na pele – e sobretudo no estômago – histórias de mau passadio, porque alguns (demasiados) vagomestres criavam esquemas para aumentar o seu pecúlio pessoal, em detrimento da qualidade e quantidade da alimentação fornecida.

Dizia-se à boca pequena que, nesses esquemas, tinham cumplicidades de outros responsáveis com quem dividiam os lucros indevidos.

Na CArt 738, excluindo a frequência com que o arroz entrava nas ementas, cuja responsabilidade cabia aos fornecimentos da Manutenção Militar, a satisfação com a alimentação era geral. Todos os que lá estiveram se recordam com certeza, de que, a partir de certa altura, quando todos estávamos fartos das detestáveis rações de combate que levávamos quando íamos para o mato, o Vaz providenciou a confecção de refeições alternativas, que podiam não ter os requisitos calóricos e vitamínicos das rações, mas que todos nós preferíamos.


Gabela, no jardim da piscina
Da esq. para a dta.: Rodrigues, Vaz e o autor do blogue

Alimentar todos os dias 163 pessoas não era uma tarefa fácil. Sei-o por experiência própria.

Quando, em 1966, já na Gabela, o Vaz veio de férias, pediu-me que o ficasse a substituir. Confesso que tentei esquivar-me, argumentando que não tinha a menor ideia do complexo funcionamento da “coisa”, e que, por certo, havia camaradas mais talhados para a função. Desde logo o 2º sargento Ferreira da Silva, que, sendo do quadro, conhecia, praticamente, todos os meandros do funcionamento do quartel; ou mesmo o Rodrigues, que sendo embora miliciano como eu, tinha já duas comissões e maior experiência.

Insistiu, evocou a nossa amizade, e acabei por aceitar.

Durante as duas semanas que antecederam a sua partida, fui a sombra do mestre em que ele se tornou, a procurar adquirir o máximo de experiência, de forma a poder levar a barca a bom porto. Teve uma paciência incrível, a esclarecer todas as minhas dúvidas, e quase conseguiu dar-me uma equivalência à sua especialidade.

Confesso, porém, que além de tudo o que ele me ensinou, foi muito importante para o modo como consegui manter a normalidade possível na cozinha e no refeitório, a colaboração do 1º cabo cozinheiro, de cujo nome, infelizmente, não me recordo.

Quando, em consequência do acidente a que já me referi em posts anteriores, fui evacuado para o hospital em Luanda, sem ter regressado à Gabela, foi o Vaz que se encarregou de recuperar e de providenciar o transporte de todos os meus haveres que lá tinham ficado.

Depois de regressarmos, finda a comissão, estive cerca de 20 anos sem estabelecer qualquer contacto com ele. Aliás, o mesmo viria a acontecer com a generalidade dos outros camaradas. As excepções contam-se pelos dedos das mãos, e talvez ainda sobre algum, e constituíram sempre encontros ocasionais, sem continuação.

Quando se iniciaram os convívios do Batalhão, ainda na década de 1980, retomei os contactos com muitos dos antigos camaradas. Mas com o Vaz, que até ao ano passado nunca tinha falhado um encontro, que me lembre, os contactos passaram a ser mais frequentes. Além das conversas telefónicas que mantínhamos de forma mais assídua, fui fidalgamente recebido na sua casa, em Guimarães, tendo-o também recebido na minha casa, em Lisboa.

Só nunca se concretizou a sua, repetidamente prometida, visita à minha casa no Algarve.

Só eu sei quanto o lamento!